Não
Não quero lembrar a criança que fui
Não
Não posso
Não quero
Não a reconheceria
Na multidão dos desajustados
Amputados de almas que passam
Desafinando o coro da multidão;
Eu a matei num final de abril
Eu a matei sem nenhum remorso
Sua doçura era nociva para esses dias
Ela queria ser bailarina
Ou cantora de cabarés
Poetisa das manhãs frias
Queria vencer a neve
Fazer o fogo com seus galhos tímidos
Aquela menina sonhava demais
Sempre sorria com qualquer desenho de nuvem
Brincava com qualquer formiga na grama
Contava segredos ao seu cachorro
Ela ousava acreditar;
Por isso a matei sem piedade
Num final de tarde de abril
Eu a convidei para brincar
E ela aceitou, não sabia nunca negar
Fomos correr num terreno abandonado
E cheio de armadilhas e buracos
Quando num momento de delírio e distração
A empurrei dentro de um poço sem fundo
Observei ela cair rodopiando feito bailarina
Pro fundo do seu abismo de candura
A matei porque um dia me mataram também
Com rituais de crueldade e sadismo
Não me deixaram nenhum sonho vivo
E matar hoje é meu único ofício;
Não
Não quero lembrar a criança que fui
Não, não posso, não quero
Ressuscitar os mortos pode ser perigoso
Além de muito doloroso
Deixa a menina que eu fui em paz
Brincando entre as nuvens de algodão
Que ela mesma desenha no céu
Deixa ela dançar seu ballet de amor
Onde tudo pode ser e acontecer
Deixa a menina que eu fui em paz
Deixa, deixa, deixa ela em paz...
(Mariana de Almeida)
Um diário denunciando através de poesias e crônicas as dores e delícias de uma mulher face ao século XXI.
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