Eu ainda vejo flores nas sarjetas
Nas cercas que nos separam
Nos muros que nos dividem
Nas escadas que não alçamos;
Eu ainda vejo flores nos olhos
Nas mãos que não tocamos
Nas bocas que não beijamos
Nos pés que não seguimos;
Eu ainda vejo flores nas esquinas
Nos automóveis que nos oprimem
Nos aviões que nos deixaram aqui
Nas nuvens de sonhos de algodão;
Sim, eu ainda vejo flores em você
No bom dia que nunca trocamos
Nas mensagens que nunca lemos
No amor que nunca mais acreditamos;
As flores resistem aos séculos, meu bem
Resistem ao ar, aos homens, ao fogo
Resistem à mágoa, à memória e à saudade
Eu tento também.
(Mariana de Almeida)
Mariana de Almeida
Um diário denunciando através de poesias e crônicas as dores e delícias de uma mulher face ao século XXI.
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Sim, eu ainda vejo flores em você.
quarta-feira, 23 de setembro de 2020
Do amor.
Uma vez soube do amor
Me disseram tantas coisas
Que preencheria minha alma
Afastaria meus medos todos
Aqueceria meu peito no inverno
Que o vinho seria compartilhado
Nossos laços seriam sagrados
Me disseram que valeria a pena
Eu veria o sentido de tudo, a vida
E o grande mistério se dissiparia.
Uma vez então conheci o amor
Foi tanta felicidade que não pude me conter
Acordei o amor às três da madrugada, em êxtase
Para lhe jurar que aquela alegria nunca acabaria
Depois nos amamos com selvageria até o dia amanhecer
E sim, logo cedo o sol invadiu a janela do nosso quarto
Depois foram tantos planos, desejos, sonhos e paixão
Casa, viagens, filhos, empregos, boletos e mais paixão
Programamos toda nossa felicidade até noventa anos
Quanta alegria e pureza é o amor!
Então quando tudo poderia ter sido nosso,
O amor adoeceu, sua aura clara escureceu, o frio chegou em nós
Por isso o amor um dia se foi, abriu a porta sem dúvidas e partiu
Precisava de ar, espaço, música, um porre na Vila Madalena ou Berlim
A sua coragem em estancar a sangria, ainda que com alguma ternura, feriu-me
O amor ficou louco, transtornou minha vida, cancelou contratos, pagou caro
Deitou-se em outras camas em busca do amor que nunca mais eu lhe daria
O amor foi cruel, impiedoso, sádico, e depois de dias quis voltar à porta
Mas não abri, estava morto, eu precisava aceitar, era preciso fazer a passagem.
Conheci e vivi o amor, bebi do seu vinho e o quis somente para mim,
Perdi e hoje sou uma peregrina de mim mesma, caminho sem saber,
Quando será a ressurreição do amor em minha vida e meu coração
Uma vez o vi perto do mar, na rochas que o cercam, mas não era
Outra vez o vi próximo ao Coliseu, como um gladiador, não era
Outra ainda, no aeroporto, fila de embarque, o perdi de vista, não era também
Às vezes o encontro em meus sonhos ou elevações, e isso me basta por hora,
Pois ao tocar-lhe novamente, nada direi, nada esperarei, nada prometerei
Apenas seremos Sol.
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Setembro.
Ela não queria mais viver, existir pesava-lhe a alma, doía-lhe o corpo já degastado, lembrar-se doía as memórias todas, os órgãos em luta, cérebro, coração e pés, não havia mais sustentação, pensava ser uma rocha talvez.
Ela queria seu direito ao voo, ser asas na imensidão do espaço, sair da órbita terrestre, quem sabe uma nova galáxia em que pudesse não sentir nenhum peso, não ser matéria, não ser consciência, não ser ninguém que um dia sofreu o abandono primário da existência. Não se pode escrever um livro sem final, nem uma vida, um dia ela pensou.
O corpo demorou muito para responder-lhe aos desejos, encontrou subterfúgios, drogas para acelerar a grande viagem, barbitúricos, álcool, televisão de domingo, noticiários populares, novelas de folhetins, casos de famílias e outras deformações.
Foram anos de distanciamento, reclusão e solidão. Nunca quis falar a respeito ou buscar ajuda especializada. Doía, doía muito. Terapias holísticas, budismo, grupos anônimos, uma religião, cabala, quem sabe? Não! Nada. Bastava esperar que a morte lhe encontraria.
Um dia ela não amanheceu, foi na penumbra da madrugada conquistar a imensidão espacial, deixou corpo, deixou copo, deixou casa, deixou filhos, deixou cachorro e deixou marido. Tinha na face um semblante tão sereno, quase engraçado. Estava livre, leve e parece que até feliz. Há anos não a via assim, aceitei, desejei uma linda viagem e com carinho roguei: Acenda no céu toda a luz que te apagaram na Terra!
Era Setembro, não sei se amarelo, azul ou lilás...mas era Setembro e uma nova primavera se anunciava inevitável em minha vida. Um novo jardim se refaz em meu coração e o vento traz saudades, paz e resignação.
Aceito, molho e floresço.
Sempre verei flores em você.
(Mariana de Almeida)
terça-feira, 15 de setembro de 2020
Consolação.
Ah... uns anos atrás
Eu e você cruzando esse mesmo caminho
Atravessando esse mesmo olhar
Sorrindo as bocas até não poder mais
Narrando os melhores fatos de cada caso,
Ah....uns anos atrás
E nossas mãos distraidamente se tocariam
Sentaríamos na mesa de um bar, na calçada
Um calor intenso, pupilas dilatadas, um cigarro,
Ah... uns anos atrás e ainda correríamos todos os riscos
Uma paixão explosiva em plena Avenida Paulista
Mais dois chopps, um cigarro de menta e um tira gosto
Trocávamos livros de poesias, falávamos de blues e jazz,
Ah... uns anos atrás e eu não desistiria de nada
Não ousaria negar os desejos da pele, da boca ardente
Não esperaria por este mundo, em chamas, acabado
Não ousaria esperar para ser nada, além de tudo o que se é
Carne, sangue, olhos, mãos e amor.
(Mariana de Almeida)
segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Adeus.
Pensei em escrever uma carta para você, afinal sempre foi mais fácil escrever que falar. Mas hoje não tenho mais essa certeza, as palavras me comovem e escrevê-las é uma grande responsabilidade que envolve nossos destinos e firma o meu carácter. Hoje sei que as palavras têm peso, medida e desejo.
Ainda assim pensei muito a respeito. Não quero mais brincar com minhas palavras, nem com minha passagem terrena e nem com o meu nobre coração, sim, hoje eu sei quanta nobreza carrego em mim e em minhas palavras, portanto, preciso dizer-lhe: Não te quero mais, não te desejo mais, não te esperarei mais nem nunca mais. Nunca faremos nada do que dissemos porque nossa centelha vital há muito se apagou e definitivamente perdemos nossa última chance.
Ufa! Foram anos nos utilizando das palavras erradas! Algumas vezes com carinho, outras com alguma sordidez patológica. Por favor, me esqueça! Não te desejo mais e só desejei antes porque te amava, mas não te amo mais e nem sei de você agora, quem é, o que pensa ou como vive. Nos perdemos entre as escolhas de novos dias.
Também quero deixar claro o quanto estou satisfeita com esse entendimento, não aguentava mais aquele constrangimento depois de todo: "Olá, como vai? O que tem feito?" Ainda deseja entrar dentro de minhas roupas? E depois? Ainda haverá silêncio ou discutiremos sobre a queda dos fascistóides do mundo? Basta! Foda-se absolutamente tudo do mundo material, não me importa mais, não me interessa mais crer em nada nem ser usada por nenhum desejo de mundo melhor. Não serei massa de manobra de mais nenhum sonho humanitário.
Então é isso, adeus, boa sorte e tenha uma longa vida! Quer dizer, longa se esse for o seu desejo, caso não seja... enfim, você deve entender o que quero dizer. Apenas formalidades de despedida, sei lá, que você seja feliz de alguma forma, com outra pessoa, que corra, que emagreça, rejuvenesça, tenha muita libido, transe muito, fique rico, compre terras, viaje para o oriente, experimente novos fumos e vinhos, tenha saúde e tudo o mais, adeus!
Ah, também não precisa manter boa educação nem formalidades, aliás você deve saber o quanto eu detesto todas essas coisas, cartões de aniversário, cartões postais de qualquer canto do mundo, fotos de lembranças... Se realmente conheceu a mim mais que ao meu corpo, saberá....saberá.
Adeus! Me esqueça por favor. Não fomos felizes quando éramos para ser, agora não te desejo mais, não tenho espaço para você na minha vida e nem na minha casa, impossível dividirmos o banheiro, por exemplo, e nem a cama, sinto muito. Adeus, me esquece, tá? É sério, sou muito individualista agora, não consigo nem dividir a Netflix, imagina o resto...
Adeus, tenha uma vida feliz em algum lugar desse planeta, mas não aqui. Aqui tudo acabou, é sério. Termino por aqui, minhas palavras também já se cansaram. Ofereça novas palavras para novas pessoas, basta de mesmos verbos, afinal é muito deselegante, discursos que foram usados entre nós, agora usados com novas pessoas. Ter que dizer isso, é no mínimo bizarro. É, não tem a menor chance mesmo de qualquer contato, minha boca seca só de pensar... impossível.
É isso, nada mais a dizer ou declarar, apenas precisamos encerrar isso.
Sem mais delongas, adeus!
Cuide-se, não esqueça o remédio da pressão pela manhã, beba muita água e evite o excesso de álcool...
Adeus... qualquer coisa, se precisar, me envia uma mensagem, você sabe onde me encontrar....adeus.
(Mariana de Almeida)
Tempo.
Tempo de desfazer
O feitiço do tempo
A ira dos deuses
Os desafetos todos,
Tempo de renunciar
Ao amor mal dado
À sementes mal germinadas
As todas promessas feitas,
Tempo de silenciar
Por todos os mortos
Por todas as perdas
Por todas as verdades,
Tempo de sepultar
O passado e seus velhos dias
Os homens e suas palavras frias
As doenças e os mal entendidos,
Tempo de renascimento
Amor próprio
Vento nos cabelos
Pés descalços
Coração sem medo,
Tempo de Ser
Liberdade.
(Mariana de Almeida)
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
Vento.
Quando foi a última vez
Que perguntaram sobre você
com sinceridade e sem julgamentos?
Quando foi a última vez
Que perguntaram sobre a sua felicidade?
Quando foi a última vez
Que aqueles que te julgam sórdidamente
Demonstraram algum afeto real,
Um toque de mãos que seja?
Quando foi a última vez que te elogiaram
Ou agradeceram por sua presença em suas vidas?
Quando foi que reconheceram seu valor, além do capital?
Pois se já faz muito e muito tempo
Não há mais porque permanecer onde está.
Não podemos mais nos sujeitar as relações
Cujo único valor seja o capital
Nem a falsa moral hétero-normativa-branca
Vamos expandir nossas capacidades afetivas
e nos relacionar de forma em que todos sejam aceitos
Como realmente são.
Basta de violência física e emocional
O novo mundo clama por justiça, bondade e inclusão
E é deste lado que eu quero estar
E é com estas pessoas que eu quero lutar
E é incrível como tantas pessoas infelizes
Querem nos ensinar a receita da felicidade, não é?
Não existe receita de bolo para a felicidade
Nem para viver a vida
Só podemos aprender vivendo e compartilhando.
Não quero mais estar onde não caibo
Não quero mais nada do que só me feriu
No final, os premiados são sempre os outros.
Fico com a minha humanidade e literatura.
Sinta o vento apenas.
Sinta.
Voo
Não se pode ir para longe
Quem embora tenha pés
Mas não tenha fé
Não se pode atravessar o mar
Quem não vence o ar
Por medo de se afogar
Não se pode bater as asas
Quem feriu o impulso
Do desejo primário de voar
Não, não se pode partir
Quem um dia foi punido
Pelo desejo de paisagem,
Mas não, não se pode ficar
Quem ousou contra
A trinca de ferro da janela
Só para voar aos céus.
(Mariana de Almeida)
terça-feira, 25 de agosto de 2020
Céu Azul.
Acordei, ou pelo menos penso que sim. A visão é embaçada, tudo ao redor parece incerto, não sei se é hoje ou ontem ou quem saberia? Isso não deveria importar tanto, o fato é que ainda existo, dói meu corpo e preciso levantar-me. O céu está tão azul, não um azul habitual e sim um azul excepcional, profundo, em camadas e ao mesmo tempo sério, conciso, tão sóbrio... Há um incomodo no peito, uma pigarra, uma tossinha seca e irritante, serão os novos ventos? Não sei, esse azul me intriga e essa pigarra também, são tempos de incertezas e desconfianças. Um pouco de cinza cairia bem para começar mais esse dia de pandemia. Quantos mortos teremos até o final desse dia? Por que mais ninguém se importa? Por que tanto faz se houver mil ou um mil trezentos e cinquenta e três mortos hoje? E se estivermos nessa contagem hoje ou amanhã? Ninguém se importa, é isso.
Sabe o que mais me revolta em morrer agora? Não ter dito tudo o que eu queria às pessoas, nunca disse nada quando elas me machucaram, foi o famoso: "Deixa para lá, isso não vale a pena...blá blá blá..." Também me revolta não ter dito porque deixei de amá-las, porque desisti de enviar mensagens, desejar feliz aniversários, rir de piadas, debater sobre novos filmes e séries, mostrar o óbvio da vida. Algumas pessoas fizeram um esforço enorme durante toda a vida para nos ferir, impondo verdades idiotas, pensando nas aparências, mesmo sem nunca terem cuidado das suas próprias. Algumas pessoas nem fecham a boca para mastigar suas comidas gordurosas enquanto falam mal de outras pessoas em pleno almoço, as pequenas torturas da vida. Fico feliz em me libertar delas, mas ainda com muita revolta de ter perdido meu tempo de vida assim. Que almas sombrias!
Senti tanta culpa por decepcionar essas pessoas, acreditam? A vida passando e eu, ao invés de tentar desesperadamente ser feliz com os meus princípios e valores, preferi fingir. Agora bem feito! Veio a pandemia com uma doença fatal esfregar na minha cara a grande idiota que sempre fui, perdi minha vida pensando no que os outros que não eram felizes nem sábios, pensariam sobre mim! Pois uma pandemia é pouco para mim, mereço, no mínimo, duas ou três!
O céu continua tão azul, sem nuvem, só a fumaça do meu cigarro que se dissolve ao ar e mantém o azul desse dia. O café está quente e é a melhor companhia desse mundo. Penso em você, e em como eu te desejei, como guardei cada risada sua nas melhores lembranças... Nosso amor sempre aconteceu no futuro do pretérito, aceito.
Já lavei os olhos, apago o cigarro junto ao último gole desse café, um pouco de xarope de mel e própolis para começar o dia vai bem, penso que ainda não será hoje o adeus de tudo, resistirei. Ganho mais esse dia, o céu está tão azul, vocês deveriam ver também, está lindo! Um avião corta o azul rumo ao infinito e tudo se torna realidade. Estou viva!
(Mariana de Almeida).
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