quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Do amor.

Uma vez soube do amor

Me disseram tantas coisas

Que preencheria minha alma

Afastaria meus medos todos

Aqueceria meu peito no inverno

Que o vinho seria compartilhado

Nossos laços seriam sagrados

Me disseram que valeria a pena

Eu veria o sentido de tudo, a vida

E o grande mistério se dissiparia.


Uma vez então conheci o amor

Foi tanta felicidade que não pude me conter

Acordei o amor às três da madrugada, em êxtase

Para lhe jurar que aquela alegria nunca acabaria

Depois nos amamos com selvageria até o dia amanhecer

E sim, logo cedo o sol invadiu a janela do nosso quarto

Depois foram tantos planos, desejos, sonhos e paixão

Casa, viagens, filhos, empregos, boletos e mais paixão

Programamos toda nossa felicidade até noventa anos

Quanta alegria e pureza é o amor!


Então quando tudo poderia ter sido nosso,

O amor adoeceu, sua aura clara escureceu, o frio chegou em nós

Por isso o amor um dia se foi, abriu a porta sem dúvidas e partiu

Precisava de ar, espaço, música, um porre na Vila Madalena ou Berlim

A sua coragem em estancar a sangria, ainda que com alguma ternura, feriu-me

O amor ficou louco, transtornou minha vida, cancelou contratos, pagou caro

Deitou-se em outras camas em busca do amor que nunca mais eu lhe daria

O amor foi cruel, impiedoso, sádico, e depois de dias quis voltar à porta

Mas não abri, estava morto, eu precisava aceitar, era preciso fazer a passagem.


Conheci e vivi o amor, bebi do seu vinho e o quis somente para mim,

Perdi e hoje sou uma peregrina de mim mesma, caminho sem saber,

Quando será a ressurreição do amor em minha vida e meu coração

Uma vez o vi perto do mar, na rochas que o cercam, mas não era

Outra vez o vi próximo ao Coliseu, como um gladiador, não era

Outra ainda, no aeroporto, fila de embarque, o perdi de vista, não era também

Às vezes o encontro em meus sonhos ou elevações, e isso me basta por hora,

Pois ao tocar-lhe novamente, nada direi, nada esperarei, nada prometerei

Apenas seremos Sol.



(Mariana de Almeida)










segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Setembro.


Ela não queria mais viver, existir pesava-lhe a alma, doía-lhe o corpo já degastado, lembrar-se doía as memórias todas, os órgãos em luta, cérebro, coração e pés, não havia mais sustentação, pensava ser uma rocha talvez.

Ela queria seu direito ao voo, ser asas na imensidão do espaço, sair da órbita terrestre, quem sabe uma nova galáxia em que pudesse não sentir nenhum peso, não ser matéria, não ser consciência, não ser ninguém que um dia sofreu o abandono primário da existência. Não se pode escrever um livro sem final, nem uma vida, um dia ela pensou.

O corpo demorou muito para responder-lhe aos desejos, encontrou subterfúgios, drogas para acelerar a grande viagem, barbitúricos, álcool, televisão de domingo, noticiários populares, novelas de folhetins, casos de famílias e outras deformações.

Foram anos de distanciamento, reclusão e solidão. Nunca quis falar a respeito ou buscar ajuda especializada. Doía, doía muito. Terapias holísticas, budismo, grupos anônimos, uma religião, cabala, quem sabe? Não! Nada. Bastava esperar que a morte lhe encontraria.

Um dia ela não amanheceu, foi na penumbra da madrugada conquistar a imensidão espacial, deixou corpo, deixou copo, deixou casa, deixou filhos, deixou cachorro e deixou marido. Tinha na face um semblante tão sereno, quase engraçado. Estava livre, leve e parece que até feliz. Há anos não a via assim, aceitei, desejei uma linda viagem e com carinho roguei: Acenda no céu toda a luz que te apagaram na Terra!

Era Setembro, não sei se amarelo, azul ou lilás...mas era Setembro e uma nova primavera se anunciava inevitável em minha vida. Um novo jardim se refaz em meu coração e o vento traz saudades, paz e resignação.

Aceito, molho e floresço.

Sempre verei flores em você.


(Mariana de Almeida)








terça-feira, 15 de setembro de 2020

Consolação.


Ah... uns anos atrás

Eu e você cruzando esse mesmo caminho

Atravessando esse mesmo olhar

Sorrindo as bocas até não poder mais

Narrando os melhores fatos de cada caso,


Ah....uns anos atrás

E nossas mãos distraidamente se tocariam

Sentaríamos na mesa de um bar, na calçada

Um calor intenso, pupilas dilatadas, um cigarro,


Ah... uns anos atrás e ainda correríamos todos os riscos

Uma paixão explosiva em plena Avenida Paulista

Mais dois chopps, um cigarro de menta e um tira gosto

Trocávamos livros de poesias, falávamos de blues e jazz,


Ah... uns anos atrás e eu não desistiria de nada

Não ousaria negar os desejos da pele, da boca ardente

Não esperaria por este mundo, em chamas, acabado

Não ousaria esperar para ser nada, além de tudo o que se é

Carne, sangue, olhos, mãos e amor.


(Mariana de Almeida)



segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Adeus.

   Pensei em escrever uma carta para você, afinal sempre foi mais fácil escrever que falar. Mas hoje não tenho mais essa certeza, as palavras me comovem e escrevê-las é uma grande responsabilidade que envolve nossos destinos e firma o meu carácter. Hoje sei que as palavras têm peso, medida e desejo.

   Ainda assim pensei muito a respeito. Não quero mais brincar com minhas palavras, nem com minha passagem terrena e nem com o meu nobre coração, sim,  hoje eu sei quanta nobreza carrego em mim e em minhas palavras, portanto, preciso dizer-lhe: Não te quero mais, não te desejo mais, não te esperarei mais nem nunca mais. Nunca faremos nada do que dissemos porque nossa centelha vital há muito se apagou e definitivamente perdemos nossa última chance.

   Ufa! Foram anos nos utilizando das palavras erradas! Algumas vezes com carinho, outras com alguma sordidez patológica. Por favor, me esqueça! Não te desejo mais e só desejei antes porque te amava, mas não te amo mais e nem sei de você agora, quem é, o que pensa ou como vive. Nos perdemos entre as escolhas de novos dias.

   Também quero deixar claro o quanto estou satisfeita com esse entendimento, não aguentava mais aquele constrangimento depois de todo: "Olá, como vai? O que tem feito?"  Ainda deseja entrar dentro de minhas roupas? E depois? Ainda haverá silêncio ou discutiremos sobre a queda dos fascistóides do mundo? Basta! Foda-se absolutamente tudo do mundo material, não me importa mais, não me interessa mais crer em nada nem ser usada por nenhum desejo de mundo melhor. Não serei massa de manobra de mais nenhum sonho humanitário.

   Então é isso, adeus, boa sorte e tenha uma longa vida! Quer dizer, longa se esse for o seu desejo, caso não seja... enfim, você deve entender o que quero dizer. Apenas formalidades de despedida, sei lá, que você seja feliz de alguma forma, com outra pessoa, que corra, que emagreça, rejuvenesça, tenha muita libido, transe muito, fique rico, compre terras, viaje para o oriente, experimente novos fumos e vinhos, tenha saúde e tudo o mais, adeus!

   Ah, também não precisa manter boa educação nem formalidades, aliás você deve saber o quanto eu detesto todas essas coisas, cartões de aniversário, cartões postais de qualquer canto do mundo, fotos de lembranças... Se realmente conheceu a mim mais que ao meu corpo, saberá....saberá. 

   Adeus! Me esqueça por favor. Não fomos felizes quando éramos para ser, agora não te desejo mais, não tenho espaço para você na minha vida e nem na minha casa, impossível dividirmos o banheiro, por exemplo, e nem a cama, sinto muito. Adeus, me esquece, tá? É sério, sou muito individualista agora, não consigo nem dividir a Netflix, imagina o resto...

   Adeus, tenha uma vida feliz em algum lugar desse planeta, mas não aqui. Aqui tudo acabou, é sério. Termino por aqui, minhas palavras também já se cansaram. Ofereça novas palavras para novas pessoas, basta de mesmos verbos, afinal é muito deselegante, discursos que foram usados entre nós, agora usados com novas pessoas. Ter que dizer isso, é no mínimo bizarro. É, não tem a menor chance mesmo de qualquer contato, minha boca seca só de pensar... impossível.

   É isso, nada mais a dizer ou declarar, apenas precisamos encerrar isso.

   Sem mais delongas, adeus!

   Cuide-se, não esqueça o remédio da pressão pela manhã, beba muita água e evite o excesso de álcool...

   Adeus... qualquer coisa, se precisar, me envia uma mensagem, você sabe onde me encontrar....adeus.


   (Mariana de Almeida)



   

   


Tempo.

 Tempo de desfazer

O feitiço do tempo

A ira dos deuses

Os desafetos todos,


Tempo de renunciar

Ao amor mal dado

À sementes mal germinadas

As todas promessas feitas,


Tempo de silenciar

Por todos os mortos

Por todas as perdas

Por todas as verdades,


Tempo de sepultar

O passado e seus velhos dias

Os homens e suas palavras frias

As doenças e os mal entendidos,


Tempo de renascimento

Amor próprio

Vento nos cabelos

Pés descalços

Coração sem medo,


Tempo de Ser

Liberdade.


(Mariana de Almeida)








sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Vento.

Quando foi a última vez

Que perguntaram sobre você

com sinceridade e sem julgamentos?

Quando foi a última vez

Que perguntaram sobre a sua felicidade?

Quando foi a última vez 

Que aqueles que te julgam sórdidamente

Demonstraram algum afeto real, 

Um toque de mãos que seja?

Quando foi a última vez que te elogiaram

Ou agradeceram por sua presença em suas vidas?

Quando foi que reconheceram seu valor, além do capital?

Pois se já faz muito e muito tempo 

Não há mais porque permanecer onde está.

Não podemos mais nos sujeitar as relações

Cujo único valor seja o capital

Nem a falsa moral hétero-normativa-branca

Vamos expandir nossas capacidades afetivas

e nos relacionar de forma em que todos sejam aceitos 

Como realmente são.

Basta de violência física e emocional

O novo mundo clama por justiça, bondade e inclusão

E é deste lado que eu quero estar

E é com estas pessoas que eu quero lutar

E é incrível como tantas pessoas infelizes

Querem nos ensinar a receita da felicidade, não é?

Não existe receita de bolo para a felicidade

Nem para viver a vida

Só podemos aprender vivendo e compartilhando.

Não quero mais estar onde não caibo

Não quero mais nada do que só me feriu 

No final, os premiados são sempre os outros.


Fico com a minha humanidade e literatura.


Sinta o vento apenas.

Sinta.


Voo

Não se pode ir para longe

Quem embora tenha pés

Mas não tenha fé


Não se pode atravessar o mar

Quem não vence o ar

Por medo de se afogar


Não se pode bater as asas

Quem feriu o impulso

Do desejo primário de voar


Não, não se pode partir

Quem um dia foi punido

Pelo desejo de paisagem,


Mas não, não se pode ficar

Quem ousou contra

A trinca de ferro da janela

Só para voar aos céus.


(Mariana de Almeida)














Só me cerco dos gentis
Favor não insistir

Tira sua maldade daqui
Que a bondade vai passar

A brutalidade é feia
Pedra lascada sob os pés

Eu gosto é das belezas
Meu caminho é terra tenra.


Mariana de Almeida)




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