quarta-feira, 15 de julho de 2020

O afeto.



   Cada dia que passa lembro-me mais das pessoas que já amei, como passaram e deixaram marcas em mim. Lembrei aleatoriamente da Tia Cleusa, quem diria, a Tia que me vendia o melhor brigadeiro do mundo.  Hoje me olho no espelho e reconheço a Tia Cleusa que há em mim, os olhos fundos, as mãos aflitas, a preocupação com o fechamento das contas do mês que nunca fecham,  o sono após o almoço,  a vista prejudicada pelos livros e agora celulares, a aceitação da tudo como uma benção e uma cruz.
   A Tia Cleusa era a dona da cantina de onde estudei por anos, ela nos atendia com tanto carinho, que me apaguei demais à ela e aos doces que vendia. Quando eu não tinha dinheiro,  ela deixava comprar fiado,  o que me dava mais prazer ainda pelo doce e pela confiança dela em mim. Eu sempre esperava pela hora do intervalo para vê-la abrir o sorriso e dizer: "Bom dia, minha fofura! Você está boa?" e aquilo enchia meu coração de uma alegria instantânea e embora tantas vezes eu estivesse triste, nunca confessei nada à ela. Então eu respondia: "Oi Tia! Estou bem sim, vou querer um brigadeiro dois amores" e ela escolhia o mais bonito para mim. 
   No decorrer do ano letivo, eu ficava degustando meu brigadeiro ou lanche no balcão da cantina com minhas poucas amigas, afinal ter muitas amigas e ser popular requeria alguns pré-requisitos os quais eu não possuía, enquanto ela contava suas histórias, às vezes falava mal do marido encostado, às vezes falava do cansaço que  dava ter três filhas, várias vezes falava pelos cotovelos mal do governo, de como era difícil pagar em dia pelo ponto da cantina todos os meses, de como era difícil fazer dieta em um mundo com tantas coisas gostosas para se comer, entre outras coisas. Eu adorava ouvi-la, saber da sua vida além da cantina. Me arrependo tanto de nunca ter dito o quanto ela me inspirava, o quanto ela transmitia força e luz para mim. Às vezes imaginava como seria ser filha dela, será que ela era carinhosa assim em casa também? Ao final ela sempre repetia para nós: "Cada um tem sua cruz nesse mundo, é assim! Mas Deus não dá uma cruz maior do que você pode suportar" entre outras reflexões. Eu pensava se era mesmo verdade isso, porque eu não gostava da minha cruz, não gostava da cruz da minha mãe nem da cruz das pessoas boas do mundo. Eu nem tinha religião, por que então teria que carregar uma cruz? Enquanto isso ela continuava falando e depois beijava com força seu crucifixo que usava diariamente no colar, acho que era de ouro. 
  Quando eu voltava para casa e encontrava minha mãe triste no sofá,  repetia as frases "motivacionais" que aprendia com a Tia Cleusa. Ela ouvia me dando a melhor atenção que podia e depois, pensativa, respondia: "É verdade, minha filha". Assim a vida ia passando. 
   Um dia a Tia não foi trabalhar, dei de cara com o molenga do marido dela sentado no caixa da cantina ouvindo esporte pelo rádio de pilha. Desisti do doce.
   Passaram mais muitos dias e nada dela, a escola tinha perdido algo de felicidade para mim, até que no final do ano eu a vi chegando e carregando algumas  sacolas e embalagens.  Estava carequinha, inchada e com o passo mais curto. Logo abriu um sorriso quando me viu, eu sorri também e corri para o banheiro chorar. Aquela Cruz ela não merecia, aquela não! 
   O câncer de mama a pegou sorrateiramente e quando descobriu já era metástase,  a coluna doía demais e a respiração era ofegante. Mas era preciso pagar o aluguel do ponto. Era preciso muito mais para carregar a Cruz.
   Ela se foi... e o molenga do marido continuou com o rádio de pilhas rindo e chorando pelo futebol por anos. Cada um tem a sua cruz...
   Penso na minha, nunca a aceitei, uma impostora, sádica e debochada... Penso quando ela trará meus tumores, com certeza estará rindo de mim! Ela sempre vence, eu que chore pelo resto da vida em posição fetal!
   Quero estar pronta. Quero lembrar dos afetos que recebi de estranhos, do jeito que a Tia Cleusa me chamava de fofura, biju, marianinha, menina de ouro, florzinha, formiguinha, meu amor... Não pensarei em dor alguma, só nos afetos gratuitos todos.
   O afeto previne o suicídio, o câncer,  a gripe e a fadiga do coração.  O afeto é quentinho e amarelo como o sol em uma manhã de inverno. 
   O afeto é um brigadeiro num dia ruim da infância. 



















Mariana de Almeida.  

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